26 de março de 2021

A União Livre

Minha mulher com a cabeleira de fogo de lenha

Com pensamentos de relâmpagos de calor

Com a cintura de ampulheta

Minha mulher com a cintura de lontra entre os dentes de tigre

Minha mulher com a boca de emblema e de buquê de estrelas de primeira grandeza

Com dentes de rastros de rato branco sobre a terra branca

Com a língua de âmbar e vidro friccionado

Minha mulher com a língua de hóstia apunhalada

Com a língua de boneca que abre e fecha os olhos

Com a língua de pedra inacreditável

Minha mulher com cílios de lápis de cor para crianças

Com sobrancelhas de borda de ninho de andorinha

Minha mulher com têmporas de ardósia de teto de estufa

E de vapor nos vidros

Minha mulher com ombros de champanhe

E de fonte com cabeças de golfinhos sob o gelo

Minha mulher com pulsos de palitos de fósforo

Minha mulher com dedos de acaso e ás de copas

Com dedos de feno ceifado

Minha mulher com as axilas de marta e faia

De noite de São João

De ligustro e de ninho de carás

Com braços de espuma de mar e de eclusa

E mistura do trigo e do moinho

Minha mulher com pernas de foguete

Com movimentos de relojoaria e desespero

Minha mulher com panturrilhas de polpa de sabugueiro

Minha mulher com pés de iniciais

Com pés de molhos de chaves com pés de calafates que bebem

Minha mulher com pescoço de cevada perolada

Minha mulher com a garganta do Vale do Ouro

De encontro no próprio leito da correnteza

Com os seios de noite

Minha mulher com os seios de toupeira marinha

Minha mulher com os seios de crisol de rubis

Com os seios de espectro da rosa sob o orvalho

Minha mulher com o ventre a desdobrar-se no leque dos dias

Com ventre de garra gigante

Minha mulher com o dorso de pássaro que voa vertical

Com dorso de mercúrio

Com dorso de luz

Com a nuca de pedra rolada e giz molhado

E queda de um copo do qual se acaba de beber

Minha mulher com os quadris de escaler

Com os quadris de lustre e penas de flecha

E de caule de plumas de pavão branco

De balança insensível

Minha mulher com nádegas de arenito e amianto

Minha mulher com nádegas de dorso de cisne

Minha mulher com nádegas de primavera

Com sexo de lírio roxo

Minha mulher com o sexo de jazida de ouro e de ornitorrinco

Minha mulher com o sexo de algas e bombons antigos

Minha mulher com o sexo de espelho

Minha mulher com olhos cheios de lágrimas

Com olhos de panóplia violeta e agulha imantada

Minha mulher com olhos de savana

Minha mulher com olhos d’água para beber na prisão

Minha mulher com olhos de lenha sempre sob o machado

Com olhos de nível d’água de nível do ar de terra e de fogo.

André Breton

4 de março de 2021

Ocaso do século

 Era para ter sido melhor que os outros o nosso século XX.

Agora já não tem mais jeito,

os anos estão contados,

os passos vacilantes,

a respiração curta.


Coisas demais aconteceram,

que não eram para acontecer,

e o que era para ter sido

não foi.


Era para se chegar à primavera

e à felicidade, entre outras coisas.


Era para o medo deixar os vales e as montanhas.

Era  para a verdade atingir o objetivo

mais depressa que a mentira.


Era para já não mais ocorrerem

algumas desgraças:

a guerra por exemplo,

e a fome e assim por diante.


Era para ter sido levada sério

a fraqueza dos indefesos,

a confiança e similares.


Quem quis se alegrar com o mundo

depara com uma tarefa

de execução impossível.


A burrice não é cômica.

A sabedoria não é alegre.

A esperança

já não é aquela bela jovem

et cetera, infelizmente.


Era para Deus finalmente crer no homem

bom e forte

mas bom e forte

são ainda duas pessoas.


Como viver – me perguntou alguém numa carta,

a quem eu pretendia fazer

a mesma pergunta.


De novo e como sempre,

como se vê acima,

não há perguntas mais urgentes

do que as perguntas ingênuas.


Wislawa Szymborska

26 de janeiro de 2021

3021

No ano de 3021 

quando chegar a hora de sua morte 

e as leis de pedra do mundo 

ainda não houverem se diluído 

no gotejar das águas doces 

de sua rebeldia, 

espero que arrebente uma veia 

de seu punho sempre erguido 

contra o deserto afetivo das mercadorias 

e que volte a encher 

os mares secos pelo aquecimento global 

para unir os continentes 

e os subversivos que confabulam

em árabe e em catalão

em notas musicais flamencas e em versos secretos 

escritas em barcos de papel 

que atravessam esses oceanos vermelhos 

para aportar ao pé de sua tumba 

ilha em que eu serei o único habitante 

escavando a areia dourada de sua carne 

para sacar a luz tesouros escondidos 

por seus pensamentos anarquistas

como um pirata sedento pela riqueza imaterial 

de seus devaneios revolucionários. 

No ano de 3021

quando chegar a hora de minha morte

e as leis de pedra do mundo 

ainda não houverem se diluído 

no gotejar das águas doces 

de minha rebeldia, 

espero que arrebente uma veia 

de seu punho sempre erguido 

contra o deserto afetivo das mercadorias 

e que inunde os aquários secos 

aonde repousam em suas imensas cadeiras 

adornadas de ouro presidentes múmias

esculpidos em golpes de estado 

com suas expressões de soberba 

conservadas por formol e por petróleo

criminosos afogados pelas águas vermelhas de seu corpo 

o cristal das paredes despedaçados 

como a queda do reino estátua 

de ditadores criados pela caneta de um poeta burocrata 

e que você possa navegar 

no transbordamento líquido de sua raiva 

até o pé de minha tumba 

como uma bruxa renascida do fogo apagado da inquisição 

para enviar a meu lado uma oração pagã 

em homenagem aos esquecidos da guerra de classes 

para com cada pedaço dessa memória destroçada 

deixar uma poesia mosaico libertária 

esculpida em minha lápide.

No ano de 3021 

quando chegar a hora de nossa morte 

seremos espíritos livres 

dançando esfumaçados as melodias fantasmas 

composta por nossos amantes em vida 

sobre a revolta definitiva 

que vai se abater sobre o mundo.


21 de novembro de 2020

Meio-Termo

Ah, como tenho me enganado

como tenho me matado

por ter demais confiado

nas evidências do amor


Como tenho andado certo

como tenho andado errado

por seu carinho inseguro

por meu caminho deserto


Como tenho me encontrado

como tenho descoberto

a sombra leve da morte

passando sempre por perto


E o sentimento mais breve

rola no ar e descreve

a eterna cicatriz

mais uma vez

mais de uma vez

quase que eu fui feliz


A barra do amor

é que ele é meio ermo

a barra da morte

é que ela não tem meio termo. 

Antônio Carlos de Brito

13 de novembro de 2019

A Piedade

Eu urrava nos poliedros da Justiça meu momento
abatido na extrema paliçada
os professores falavam da vontade de dominar e da
luta pela vida
as senhoras católicas são piedosas
os comunistas são piedosos
os comerciantes são piedosos
só eu não sou piedoso
se eu fosse piedoso meu sexo seria dócil e só se ergueria
aos sábados à noite
eu seria um bom filho meus colegas me chamariam
cu-de-ferro e me fariam perguntas: por que navio
bóia? por que prego afunda?
eu deixaria proliferar uma úlcera e admiraria as
estátuas de fortes dentaduras
iria a bailes onde eu não poderia levar meus amigos
pederastas ou barbudos
eu me universalizaria no senso comum e eles diriam
que tenho todas as virtudes
eu não sou piedoso
eu nunca poderei ser piedoso
meus olhos retinem e tingem-se de verde
Os arranha-céus de carniça se decompõem nos
pavimentos
os adolescentes nas escolas bufam como cadelas
asfixiadas
arcanjos de enxofre bombardeiam o horizonte através
dos meus sonhos

Roberto Piva

12 de novembro de 2019

Confissão

Não amei bastante meu semelhante,
não catei o verme nem curei a sarna.
Só proferi algumas palavras,
melodiosas, tarde , ao voltar da festa.

Dei sem dar e beijei sem beijo.
(Cego é talvez quem esconde os olhos
embaixo do catre.) E na meia-luz
tesouros fanam-se, os mais excelentes.

Do que restou, como compor um homem
e tudo o que ele implica de suave,
de concordâncias vegetais, murmúrios
de riso, entrega, amor e piedade?

Não amei bastante sequer a mim mesmo,
contudo próximo. Não amei ninguém.
Salvo aquele pássaro -vinha azul e doido-
que se esfacelou na asa do avião.

Carlos Drummond de Andrade

31 de outubro de 2019

Como você se sente?

Como vc se sente?
Num vão vazio entre duas paredes úteis...
Como vc se sente?
Um mariposa queimando asas na luz, fugindo da escuridão...
Como vc se sente?
Num discurso importante sufocado por vozes e vaias...
Como vc se sente?
Um toque no ombro que escarnece, em pedido de atenção...
Como vc se sente?
Encolhido entre risos sinceros e cômicos...
Como vc se sente?
Passando num buraco em direção a água, entalado...
Como vc se sente?
Uma peça nova de uma máquina sucateada e obsoleta...
Como vc se sente?
Armadilhado num corpo sem saber como sair...
Como vc se sente?
Como vc se sente?Como vc se sente?Como vc se sente?Como vc se sente?Como vc se sente?Como vc se sente?Como vc se sente?Como vc se sente?Como vc se sente?Como vc se sente?Como vc se sente?Como vc se sente?Como vc se sente?Como vc se sente?Como vc se sente?Como vc se sente?Como vc se sente?Como vc se sente?Como vc se sente?Como vc se sente?Como vc se sente?Como vc se sente?Como vc se sente?..........

30 de maio de 2018

Bertold Brecht

Nós pedimos com insistência
Nunca digam: "isso é natural"
Diante dos acontecimentos de cada dia
Numa época em que reina a confusão
Em que corre sangue
Em que se ordena a desordem
Em que o arbitrário tem força de lei
Em que a humanidade se desumaniza
Nunca digam: "isso é natural".
Estranhem o que não for estranho
Tomem por inexplicável o habitual
Sintam-se perplexos ante o cotidiano
Tratem de achar um remédio
Para o abuso
Mas não se esqueçam
De que o abuso é sempre a regra
Desconfie do mais trivial, na aparência singela
Imagine o que parece habitual.
Suplicamos expressamente:
não aceite o que é de hábito como coisa natural,
pois em tempos de desordem sangrenta,
de confusão organizada,
de arbitrariedade consciente,
de humanidade desumanizada,
nada deve parecer natural
nada deve parecer impossível de mudar.

Bertold Brecht

26 de agosto de 2016

Aos que virão depois de nós

I
Eu vivo em tempos sombrios.
Uma linguagem sem malícia é sinal de
estupidez,
uma testa sem rugas é sinal de indiferença.
Aquele que ainda ri é porque ainda não
recebeu a terrível notícia.
Que tempos são esses, quando
falar sobre flores é quase um crime.
Pois significa silenciar sobre tanta injustiça?
Aquele que cruza tranqüilamente a rua
já está então inacessível aos amigos
que se encontram necessitados?
É verdade: eu ainda ganho o bastante para viver.
Mas acreditem: é por acaso. Nado do que eu faço
Dá-me o direito de comer quando eu tenho fome.
Por acaso estou sendo poupado.
(Se a minha sorte me deixa estou perdido!)
Dizem-me: come e bebe!
Fica feliz por teres o que tens!
Mas como é que posso comer e beber,
se a comida que eu como, eu tiro de quem tem fome?
se o copo de água que eu bebo, faz falta a
quem tem sede?
Mas apesar disso, eu continuo comendo e bebendo.
Eu queria ser um sábio.
Nos livros antigos está escrito o que é a sabedoria:
Manter-se afastado dos problemas do mundo
e sem medo passar o tempo que se tem para
viver na terra;
Seguir seu caminho sem violência,
pagar o mal com o bem,
não satisfazer os desejos, mas esquecê-los.
Sabedoria é isso!
Mas eu não consigo agir assim.
É verdade, eu vivo em tempos sombrios!

II
Eu vim para a cidade no tempo da desordem,
quando a fome reinava.
Eu vim para o convívio dos homens no tempo
da revolta
e me revoltei ao lado deles.
Assim se passou o tempo
que me foi dado viver sobre a terra.
Eu comi o meu pão no meio das batalhas,
deitei-me entre os assassinos para dormir,
Fiz amor sem muita atenção
e não tive paciência com a natureza.
Assim se passou o tempo
que me foi dado viver sobre a terra.

III
Vocês, que vão emergir das ondas
em que nós perecemos, pensem,
quando falarem das nossas fraquezas,
nos tempos sombrios
de que vocês tiveram a sorte de escapar.
Nós existíamos através da luta de classes,
mudando mais seguidamente de países que de
sapatos, desesperados!
quando só havia injustiça e não havia revolta.
Nós sabemos:
o ódio contra a baixeza
também endurece os rostos!
A cólera contra a injustiça
faz a voz ficar rouca!
Infelizmente, nós,
que queríamos preparar o caminho para a
amizade,
não pudemos ser, nós mesmos, bons amigos.
Mas vocês, quando chegar o tempo
em que o homem seja amigo do homem,
pensem em nós
com um pouco de compreensão.
...

Bertold Brecht

17 de agosto de 2016

Álvaro de Campos

Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?
És importante para ti, porque é a ti que te sentes.
És tudo para ti, porque para ti és o universo,
E o próprio universo e os outros
Satélites da tua subjetividade objetiva.
És importante para ti porque só tu és importante para ti.
E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?

Álvaro de Campos